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Breve Reflexão Sobre a Vinda do Senhor e a Esperança Humana

Breve Reflexão Sobre a Relação Entre a Vinda de Cristo e a Esperança Humana

Texto: I Tessalonicenses 4.13-18

Por Alexandre Azevedo

O contexto histórico da passagem bíblica na qual se baseia esta reflexão está relacionado à angústia da igreja em Tessalônica em face a uma dúvida relativa aos eventos relacionados à volta de Cristo. Sua maior alegria estava dando lugar à sua maior preocupação. Esperavam confiantemente pelo Senhor, mas estavam inseguros e temerosos de que, de alguma forma, aqueles que estavam morrendo sem alcançar a Sua vinda (parousia) fossem prejudicados.

As palavras de Paulo serviram para tranquilizar aqueles irmãos, na medida em que esclareceu a ordem dos acontecimentos relativos à Igreja, ligados à parousia: em primeiro lugar, os mortos em Cristo ressuscitarão; em seguida, todos os crentes, de todas as épocas, subirão juntos, a encontrar (recepcionar) o Senhor nos ares. Este evento inaugurará o estado eterno da Igreja ([…] e assim, estaremos para sempre com o Senhor – v. 17b).

Com base nisto, gostaria de destacar três fatos depreendidos do texto. O primeiro nos dá conta de que o sentido da existência humana não encontra seu fundamento nas experiências transitórias da temporalidade. Em outras palavras, nossa existência não pode ser justificada pelo curto espaço de tempo durante o qual nos relacionamos com este mundo. Paulo expõe isto na medida em que estabelece um paradoxo irreconciliável entre a esperança cristã e a falta de esperança do mundo quanto ao porvir. De modo diferente dos descrentes (daqueles que não têm esperança), podemos nos alegrar, pois temos a garantia de que estaremos para sempre com Cristo, e é isto que dá sentido à nossa existência.

O segundo fato diz respeito ao conteúdo de nossa crença com relação à parousia. Compreendê-la parcialmente é colocar-se aquém da poderosa expectativa que ela deve gerar em nosso coração. O resultado da má compreensão pode ser sentimentos que vão desde a instabilidade emocional (no caso dos tessalonicenses, a preocupação e a tristeza pelos que haviam morrido sem alcançar a promessa) à total apatia espiritual (como nos nossos dias, por parte de muitos).

O terceiro fato diz respeito à historicidade da parousia e dos eventos a ela relacionados. Para Paulo, a vinda de Jesus não é um ideal utópico, uma dramatização alegórica com vistas à mobilização dos esforços cristãos para o estabelecimento do Reino de Deus, através da transformação da sociedade. Ao contrário, ele sabe que Jesus voltará na história, visível e corporalmente, para receber sua Igreja para si mesmo. Por ocasião de Sua vinda haverá ressurreição de mortos e a Igreja irá ao Seu encontro nos ares. Por mais fantástico que possa parecer, é história a se cumprir.

Negar o caráter histórico da parousia e do arrebatamento da Igreja é relativizar o próprio núcleo da escatologia do Novo Testamento. Além disto, a falta de percepção do significado da volta de Jesus e do arrebatamento pode deslocar o centro de nossas expectativas do porvir para este mundo, gerando em nós a ilusão de que o paraíso aqui se conquista e de que nada mais precisamos, além da felicidade nesta vida. Neste contexto, o próprio conceito de urgência missionária é esvaziado e a pregação deixa de ser conclamação ao arrependimento e à fé, e passa a ser discurso de conveniência ou mera conclamação ao engajamento pelas causas sociais.

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Ser e Não-Ser: Uma Reflexão Sobre a Existência de Deus

Ser e Não-Ser: Uma Reflexão Sobre a Existência de Deus

Por Alexandre Azevedo

Existir é ser: oposto do nada. O nada, por definição, é ausência absoluta, é o não-ser. Assim, o que não é o nada é existência, independente do nível, independente da forma. O ser integra a realidade, e não “é” fora dela. Então, característica do ser: ser percebido, por si ou por outros.

A percepção do ser por si mesmo ou por outros denota sua existência objetiva. Logo, o não-ser não pode, por definição, ser percebido, e se algo é percebido não é um não-ser, logo existe. Isto não significa que todas as sensações interiores, tidas como percepções, apontam para a realidade. Há de se admitir a conclusão de Descartes de que a percepção dos objetos sensíveis não está livre de enganos, o que significa que o conhecimento empírico (da experiência) em si não nos dá total garantia acerca da realidade. No entanto, isto não inviabiliza a proposição de que a existência do ser é atestada por sua autopercepção ou pela percepção de outros, pois ainda que o julgamento dos dados relativos a um objeto do conhecimento (um ser), dados estes fornecidos pelos sentidos à razão, possa estar equivocado, não se pode duvidar da existência de tal objeto, pois a mesma não está atrelada ao tipo de julgamento que dela se faz. Desta forma, ainda que se julgue mal um ser percebido, não se pode duvidar de que a simples percepção do mesmo confirma a sua existência.

Isso é verdade para todas as categorias de existência. A Bíblia nos fala de duas principais: existência necessária e existência derivada. A existência necessária é a existência “em si e por si”, e pertence exclusivamente ao Ser necessário (Deus). A existência derivada é a existência recebida e não é em “si mesma”, pois depende de outro ser que a origine. É, portanto, a categoria de existência de todos os outros seres que não o Ser necessário. A existência necessária não tem um marco inicial, pois uma vez que não é derivada de outro, e nem pode ter-se originado do nada (pois do nada, nada vem), só pode ser eterna. Por sua vez, a existência derivada ou recebida tem um início, portanto não é eterna, sendo, por isso, limitada.

A Bíblia apresenta Deus como um Ser cuja existência está em Si mesmo, sendo que esta abarca a totalidade do tempo histórico (passado, presente e futuro) e o ultrapassa, pois nessa relação Ser & tempo, o Ser é anterior ao tempo. Isto fica evidente pela resposta de Deus a Moisés, quando este lhe perguntou acerca do Seu nome: “Eu Sou o que Sou” (Êxodo 3:14). Tal afirmação evoca a ideia de independência absoluta e de total autosuficiência, inclusive com relação ao tempo.

Sendo Deus, portanto, um Ser, Sua existência, necessariamente, deve ser percebida. O testemunho bíblico acerca disto nos dá conta de que Deus não apenas tem plena consciência de Si mesmo – autopercepção (cf. o versículo acima mencionado), mas também se torna evidente na mente de suas criaturas. É o que diz Romanos 1:19-21: ”Porquanto o que de Deus se pode conhecer neles se manifesta, porque Deus lho manifestou. Porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder, como a sua divindade, se entendem, e claramente se veem pelas coisas que estão criadas, para que eles fiquem inescusáveis; Porquanto, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu”.

O fato de que a existência de Deus é percebida por suas criaturas é atestado pela universalidade da ideia da divindade. Apesar de não haver uma unanimidade na definição desta, sabe-se, de forma geral, da existência do Ser Superior, muito embora tal ideia seja, às vezes, diluída na concepção de múltiplas divindades (como no politeísmo), ou na universalização do conceito de Deus (como no panteísmo), mas aqui deve-se considerar o que foi dito acima, ou seja, que apesar da possibilidade de se julgar mal um ser percebido, não se pode duvidar de que a simples percepção do mesmo confirma a sua existência. Assim, não é a forma como se entende este ser, mas a conclusão de que o percebê-lo atesta a sua existência.

Portanto, se tem-se consciência da ideia de Deus, e se esta é corroborada pelos fatos externos, que fazem eco na interioridade, então Deus existe, pois o não existente, o não-ser, o nada não poderia desencadear tal processo, por uma impossibilidade lógica.

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Jesus e as Angústias Humanas

Jesus e as Angústias Humanas

Uma Análise de Marcos 5.21-43

Por Alexandre Azevedo

Introdução

A série de milagres de Marcos 4:35-5:43 segue, em linhas gerais, a forma de milagre padrão, que pode ser observada na literatura judaica e cristã e que, normalmente, apresenta as seguintes características: há uma descrição da cena, inclusive das pessoas presentes, que servem de testemunhas oculares do milagre; há uma descrição do problema, que pode ser uma enfermidade, uma possessão, uma morte, etc.; há um milagre, uma solução que transcende os processos naturais; há uma prova de que o milagre de fato aconteceu, por exemplo: o paralítico se levanta, o cego enxerga, o morto é ressuscitado; e há uma aclamação pública, um reconhecimento coletivo de que um milagre ocorreu.

Em Marcos, o milagre acontece na história, isto é, é fato observável e inquestionável, atestado por testemunhas oculares que podem verificar o antes e o depois do beneficiário do mesmo. Conquanto a nossa época encare o milagre com desconfiança ou mesmo como uma total impossibilidade, herdeira que é do racionalismo iluminista, que categorizou os eventos sobrenaturais como mitos forjados pela mentalidade mágica e pré-científica dos povos antigos, os evangelhos o apresentam como consequência direta do poder e da misericórdia de Deus no trato com a humanidade. Assim, no novo testamento, o milagre é não apenas possível, mas também esperado e buscado pelos necessitados que creem em Deus.

Na agenda teológica de Marcos, os milagres assumem diversas finalidades, como por exemplo, a de validar a autoridade de Jesus para ensinar (cf. Mc. 1:21-27), e a de atestar sua divindade (Mc. 2:1-12; 4:36-41). No caso do texto em análise (5:21-43), vemos algo mais: a disposição de Jesus de colocar-se ao alcance dos dramas que afligem não apenas o corpo, mas também a alma, as emoções, a interioridade desgastada pelo sofrimento, bem como a de romper convenções sociais e religiosas para socorrer pessoas necessitadas. Neste texto, vemos um Salvador profundamente condescendente com pessoas aflitas e quebradas pela dor; um Salvador sensível, que se preocupa com todos os níveis de existência (mulheres, crianças, pobres, ricos), colocando-os num mesmo nível de significação existencial, contrariando, assim, a lógica dos arrogantes, que discriminam pessoas por sua condição.

Enfocaremos, portanto, este aspecto do texto, sem desconsiderar os elementos retóricos usados por Marcos, os quais cumprem funções bem determinadas dentro da estrutura geral do livro. Em Marcos nada é por acaso; todos os blocos de material estão conectados dentro de uma estrutura que cumpre propósitos teológicos que vão se tornando claros na medida em que o roteiro de desenrola. Assim, os leitores vão sendo informados sobre as verdades relativas a Jesus, verdades estas indispensáveis àqueles que enfrentam oposição à sua fé (o que parece ser o caso dos leitores de Marcos), como por exemplo, o fato de que a perseverança cristã em meio às lutas é justificada pelo fato de servirmos a um Salvador divino, todo poderoso e profundamente comprometido com a nossa causa.

Análise de Marcos 5:21-43

O texto de Marcos 5:21-43 é a conclusão de uma seção que começa em 4:35, e trata de vários milagres realizados por Jesus. Começando por um milagre na natureza (o apaziguamento da Tempestade – Mc. 4:35-41), a seção prossegue com um exorcismo (Mc. 5:1-20) e encerra com uma ressurreição, sendo que a história desta é intercalada pela história da cura da mulher hemorrágica. Esta série de histórias de milagres está tematicamente ligada à seção anterior, o discurso parabólico de Jesus (Mc. 4:1-32), que fala do progresso do Reino de Deus. Assim, a seção de milagres ilustra o avanço do Reino, mesmo em meio aos poderes opostos.

No primeiro milagre, Jesus exerce sua autoridade sobre a natureza. A tempestade que se levanta ameaçadora, na medida em que se agiganta, reduz proporcionalmente os recursos dos discípulos. A angústia destes cresce, fato que é comprovado pela maneira como eles se dirigem a Jesus: “[…] Mestre, não te importa que pereçamos?” (Mc. 4:38b). Na narrativa de Mateus do mesmo episódio, esta angústia fica ainda mais evidenciada: “Mas os discípulos vieram acordá-lo, clamando: Senhor, salva-nos! Perecemos!” (Mt. 8:25). Pode haver aqui uma alusão ao salmo 107:23-30, no qual os mercadores, numa tempestade no mar “na sua angústia clamaram ao Senhor, e ele os livrou das suas tribulações. Fez cessar a tormenta, e as ondas se acalmaram. Então, se alegraram com a bonança; e, assim, os levou ao desejado porto” (Sl. 107:28-30). Assim, Marcos parece narrar a ação de Jesus sobre a tempestade estabelecendo um paralelo direto entra aquela e o salmo citado: “E ele, despertando, repreendeu o vento e disse ao mar: Acalma-te, emudece! O vento se aquietou, e fez-se grande bonança” (Mc. 4:39). Se assim for, temos nesta história uma referência à divindade de Jesus, uma vez que este cumpre aqui o papel que no salmo é atribuído a Deus.

Poder-se-ia ainda destacar o aspecto simbólico do apaziguamento da tempestade, considerando a associação entre o mar (as águas) e o mal. Conforme Throup, “[…] no AT, o mar/águas simbolizam a força do mal que só Deus no seu poder é capaz de repreender, subjugar e derrotar”. É significativo que neste milagre Jesus use linguagem semelhante à usada para expulsar demônios1.

No segundo milagre da seção, Jesus exerce sua autoridade sobre os demônios. Em Marcos, o demonismo é um tema recorrente, e ilustra o embate existencial subjacente à realidade visível. O mundo descrito por Marcos está repleto de interferências espirituais, as quais desencadeiam processos históricos que transcendem a naturalidade. Conforme Camery-Hoggatt: “O grande interesse de Marcos é mostrar não apenas que as forças demoníacas estão em todos os lugares, mas, onde quer que sejam encontradas e o quão fortes possam ser, Jesus é mais forte […] o diabo nunca vencerá, porque suas maquinações malignas já foram destruídas pela obra de Jesus”.2

Os detalhes com os quais Marcos descreve a situação do endemoninhado colocam em ênfase o terrível drama deste homem e o gigantesco poder diabólico que o dominava. Tal descrição serve para colocar em destaque o poder ainda mais grandioso de Jesus. Este fato é evidenciado pelo contraste narrativo entre os versículos 2 a 5 do capítulo 5 e o versículo 15 do mesmo capítulo. Nos versículos 2 a 5 aquele homem está nos sepulcros, furioso, tomado por um poder sobre-humano, que destruía grilhões e cadeias, em frenética atividade dia e noite, e ferindo-se com pedras. No versículo 15 ele está assentado, vestido e em perfeito juízo. Assim Marcos demonstra que, em contraste com o poder das trevas, o poder de Jesus não encontra resistência.

A seção é concluída com os milagres intercalados da ressurreição da filha de Jairo e da cura da mulher do fluxo de sangue. Este texto expressa, de modo poderoso, o drama do coração humano em condições de existência absolutamente desfavoráveis. Marcos consegue descrever a cena de forma a colocar em realce a angústia dos personagens principais da história. De um lado, um homem importante, da alta sociedade judaica; do outro, uma mulher empobrecida por uma doença que não apenas lhe consumiu o dinheiro, mas também a dignidade e a autoestima. Pessoas separadas por suas condições sociais, mas unidas por suas tragédias pessoais e familiares. Jairo é um pai desesperado, que vê a vida de sua filha, pré-adolescente, minguar-se inexoravelmente. A mulher é uma anônima (apenas mais uma dentre as milhares de mulheres inseridas em uma sociedade machista e preconceituosa) que vê escorrer, ao longo de doze anos, não apenas o seu sangue, mas também as suas esperanças, o seu equilíbrio interior, a sua motivação e a coragem de se colocar no mesmo nível de significação existencial das outras pessoas.

Existem, também, paralelos entre a história de Jairo e a do endemoninhado gadareno. Jairo é um homem bem-sucedido, pertencente ao topo da escala social. O verso 22 apresenta-o como chefe de uma sinagoga (αρχισυναγωγων, no plural, mas o significado deve ser que Jairo era o líder de uma única sinagoga, embora seu ofício fosse reconhecido em todas as sinagogas). “O αρχισυναγωγων talvez fosse o indivíduo que não conduzisse a adoração pública, mas que arranjasse as coisas para os outros fazerem, que cuidava das questões materiais e financeiras da sinagoga”.3 Conforme Pohl (1998, p. 185), “com respeito ao presidente da sinagoga, “na maioria das vezes tratava-se de um integrante leigo de uma família abastada, que fosse respeitado e fiel à lei”. O endemoninhado gadareno, por sua vez, achava-se em miséria existencial, espoliado em sua dignidade em todos os níveis da sua vida. No relato de Marcos, apesar dos distanciamentos existenciais, ambos se prostram diante de Jesus (v. 22; cf. v. 6; a mulher hemorrágica também se prostra diante de Jesus, cf. v. 33); ambos suplicam muito (και παρακαλει αυτον πολλα – tanto no versículo 10 como no 23); e ambos são socorridos por Jesus. Assim, Jesus é apresentado como aquele que se move em misericórdia, tanto em direção aos miseráveis quanto aos abastados, desde que estes reconheçam sua necessidade.

Há outros pontos em comum que ligam as personagens da perícope em questão (5:21-43). A mulher começara a sofrer ao tempo em que a menina nascera. Ambas eram mulheres, e como tal, pouco valorizadas. Ambas foram acometidas por males que não cederam, mesmo diante de todos os esforços empreendidos. Além disso, por sua condição, ambas eram impuras (neste caso, a menina depois de morta). Estes são detalhes secundários, mas que devem exercer uma função complementar dentro da retórica de Marcos, talvez a de exemplificar até onde Jesus estava disposto a ir para socorrer os aflitos, quebrando convenções sociais e propondo-se, inclusive, a tornar-se cerimonialmente impuro ao tocar pessoas impuras.

Como já foi mencionado, Marcos conta as histórias desses dois personagens (Jairo e a mulher) de forma intercalada. Ele começa a história de Jairo, interrompe-a no meio, começa a da mulher hemorrágica e a conta por completo, só então retoma a de Jairo e a completa. Este é um recurso narrativo que, neste caso, cumpre funções retóricas, realçando aspectos comuns entre as histórias, para colocar em relevo o modo como Jesus trata as questões humanas. Sobre este ponto, convém dizer que, em nenhuma das narrativas bíblicas de encontros entre gente necessitada e Jesus, houve recusa da parte deste com relação a essas pessoas. Talvez se argumente que uma exceção seja o caso da mulher siro-fenícia (Mc. 7:24-30; Mt. 15:21-28), que no primeiro momento recebeu uma resposta negativa de Jesus. Porém a conclusão da narrativa é gloriosa, na medida em que expõe um Jesus que estava disposto a se deixar persuadir pelos argumentos de uma mulher cheia de fé. Jesus era acessível a quem o buscava de coração, a quem o reconhecia como a única esperança.

É em condição de desespero que tanto Jairo quanto a mulher procuram a Jesus. Este está cercado por uma multidão, que naturalmente se constitui num obstáculo para aqueles. Seria uma visão romântica imaginar uma multidão comportada, caminhando ao lado de Jesus de forma ordenada. Ao contrário, o versículo 24 afirma que Jesus estava sendo oprimido por ela. Pode-se imaginar uma situação próxima ao descontrole, com pessoas lançando-se sobre ele, buscando tocá-lo de qualquer forma, atropelando-se umas às outras. O linguajar deste versículo é semelhante ao de Marcos 3:9,10, onde está dito que todos quantos tinham algum mal se arrojavam sobre ele para lhe tocarem, razão por que ele ordena que os discípulos tivessem sempre um barquinho à sua disposição para protegê-lo da multidão em frenesi. Romper essa massa compacta de pessoas não seria tarefa fácil, nem para Jairo, nem para aquela mulher já fragilizada por sua condição física.

O fato de Marcos mencionar a multidão neste ponto estabelece alguns contrastes entre esta e os outros dois protagonistas da história. A multidão é a coletividade, mas Jairo e a mulher sentem o isolamento da alma pelo drama que enfrentavam (grandes angústias têm o potencial de gerar solidão em nossas almas, mesmo quando estamos diante de muitas pessoas). A multidão quer conservar Jesus consigo, mas Jairo não tem um minuto a perder, pois a morte galopa velozmente em direção à sua casa. A multidão expõe-se, mas a mulher hemorrágica tenta passar despercebida, pelo medo de represálias que poderiam aumentar ainda mais o seu drama.

Chega Jairo diante de Jesus, se ajoelha: seu desespero é maior que seu orgulho, sua filha mais importante que seu status. A imagem de uma autoridade prostrada aos pés de Jesus acentua profundamente os motivos que proporcionaram tal fato, e ao mesmo tempo denuncia a leviandade daqueles que se mantiveram arrogantemente de pé diante do Mestre e se prostraram ao “status quo” e ao respeito humano. A atitude de Jairo segue em direção oposta à daqueles mencionados em João 12:42,43: “Apesar de tudo, até muitos dos principais creram nele; mas não o confessavam por causa dos fariseus, para não serem expulsos da sinagoga. Porque amavam mais a glória dos homens do que a glória de Deus”.

Os motivos das autoridades judaicas para rejeitar a Jesus não eram teológicos, apesar de que eles assim os tenham tentado justificar em algumas ocasiões. Em João 9:16 eles dizem que Jesus não era de Deus, pois não guardava o sábado, uma vez que curara um cego naquele dia. Também com respeito ao sábado, marcos narra em 3:1-6 um conflito em torno da cura de um deficiente físico neste dia, envolvendo Jesus e os fariseus. O cenário é a sinagoga de Cafarnaum, os fariseus estão estreitando o cerco contra Jesus, e aqui observam se curaria no sábado um homem com uma das mãos mirradas, presente na sinagoga, para assim o acusarem. A narrativa é irônica, pois desvela a hipocrisia deles na medida em que deixa claro que o seu zelo não era pela lei de Deus, mas por si mesmos. As palavras de Jesus esclarecem tudo: “E perguntou-lhes: É lícito no sábado fazer bem, ou fazer mal? salvar a vida ou matar?” (Mc. 3:4). É dito que “eles calaram-se”. A ironia da pergunta de Jesus coloca o Senhor e os fariseus em lados opostos: ao curar um homem no sábado, Jesus estava fazendo o bem e dando a vida; ao espreitar Jesus, buscando nele uma falha para o acusarem, os fariseus estavam, no sábado, fazendo o mal e “matando”. Não é sem propósito que marcos encerra o parágrafo afirmando: “E, tendo saído os fariseus, tomaram logo conselho com os herodianos contra ele, procurando ver como o matariam” (3:6).

Assim, tentar justificar a rejeição a Jesus com base numa suposta quebra da lei não era razoável em face das evidências contrárias. Até mesmo um “cego” poderia “enxergar” que Jesus era de Deus, por fazer os sinais que fazia. João expõe isto no diálogo entre um cego curado por Jesus e os fariseus (Jo. 9). Após ter sido interrogado por estes e de ter ouvido deles a afirmação de que Jesus não era de Deus e de que era pecador, aquele homem afirmou: “Se este homem não fosse de Deus, nada poderia ter feito” (Jo. 9:33). Esta afirmação faz eco ao que Nicodemos disse em Jo. 3:2: “Rabi, bem sabemos que és mestre, vindo de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não for com ele”.

Portanto, os motivos eram outros. As diversas denúncias de Jesus com respeito à maneira ilegítima com que os líderes religiosos conduziam suas funções deixam claro seu orgulho, vaidade e alienação da verdade de Deus. Tornaram-se exploradores dos outros, afeitos ao reconhecimento público, amantes do poder e do status. Sua posição fica bem evidenciada na reunião do sinédrio descrita em Jo. 11:47-57, na qual expressam seu medo de terem suas posições políticas suprimidas pelas autoridades romanas em função da crescente popularidade de Jesus. Em tal estado, eles jamais reconheceriam a autoridade de Jesus nem se colocariam ao alcance de suas palavras. Somente razões mais fortes do que sua vaidade e egoísmo poderiam dissuadi-los de tal postura. Jairo tinha uma razão.

Jesus vê a Jairo, o ouve, o atende. Inicia-se a marcha rumo à sua casa: lenta, penosa, truncada pelo excesso de gente que se espreme nas vielas apertadas daquela cidade. Chega a mulher por trás dele, apagada, medrosa, procurando não ser percebida – não era “ninguém”, não se sentia ninguém. Espreme-se na multidão, se expõe ao desconforto dos esbarrões, do calor intenso – maior desconforto tinha a sua alma, nada seria caro demais para livrá-la dele. Não quer que Jesus a veja, quer apenas tocar em seu vestido. Sua preocupação em permanecer anônima era compreensível, pois conforme Levíticos15:25-29 ela era uma mulher impura por sua hemorragia (ρυσει αιματος – um termo técnico para a menstruação), e neste estado tudo o que tocasse e todos os que nela tocassem seriam imundos. Segundo Pohl (op. cit. p. 187), a hemorragia daquela mulher “pode ter-se tratado de uma menstruação anormalmente forte, ou de um sangramento do útero”. De qualquer forma, Marcos expressa o seu drama não apenas em termos fisiológicos, mas também psicológicos, morais e financeiros, pois diz que ela “tinha sofrido bastante às mãos de muitos médicos, e despendido tudo quando possuía sem nada aproveitar, antes indo a pior” (v. 26).

A necessidade de se expor a esses médicos e de se submeter a tratamentos ineficazes e, talvez, degradantes, constituía-se, por si só, em um grande inconveniente, ainda mais quando tais métodos faziam escoar seus bens, levando-a a pobreza. Pior que tudo isto era o agravamento de sua enfermidade, ao que parece potencializado pela ação desses médicos. Por outro lado, o fator emocional deve ter sido um dos maiores fardos para ela. O isolamento social, inclusive com relação à própria família, que não podia tocá-la sem prejuízo, deve ter dado ocasião para a introspecção e autopunição.

É neste estado que ela ouve falar de Jesus. Certamente a sua fama, que se espalhou rapidamente, foi acompanhada pelos testemunhos daqueles que foram curados por ele e daqueles que presenciaram estas curas. A constatação de que o simples toque em Jesus era suficiente para curar alguém deve ter cristalizado, na mente das pessoas doentes, uma conduta ou procedimento quando diante dele. Marcos já havia mencionado em 3:10 que aqueles que tinham algum mal se arrojavam sobre ele para lhe tocarem, e isto depois de mencionar, no início do mesmo versículo, que ele tinha curado a muitos. Isto deve ter chegado ao conhecimento daquela mulher. Ela toca-o e se vê curada. Jesus para, todos param. A pergunta que se segue parece estranha: “Quem me tocou?” Ninguém entende. Não se pergunta isso num contexto como aquele. Muitos o tocavam. Os discípulos o reprovam. Ele olha em redor, procurando quem o tocara. Este ponto da narrativa enfoca a tensão que se estabelece naquele momento, e que envolve os dois personagens. A mulher não conseguira desvencilhar-se da multidão a tempo de evitar o olhar perscrutador de Jesus. A cena torna-se carregada de sentimentos misturados: a alegria de se ver curada (v. 29) dá lugar ao medo da censura e da reprovação, pois o versículo 33 afirma que temendo e tremendo, ela prostra-se e diz toda a verdade a Jesus. O medo de ser reprovada por ele realça ainda mais a ternura graciosa do Senhor para com ela. Ao invés de palavras ásperas, ela ouve palavras de encorajamento e de aceitação. A resposta de Jesus não apenas confirma a restauração do seu corpo, mas também a de sua dignidade. Chama-a de “filha”, manda que vá em paz e fique livre do seu mal, do seu desespero, do abismo de sua alma. Ela já não tem mais por que se esconder, quer ser vista, quer ser ouvida, tem algo a dizer, conheceu a Jesus.

No entanto, um leitor atento perceberá que apesar de Marcos ter-se calado momentaneamente acerca de Jairo, a menção à interrupção da marcha de Jesus rumo à sua casa serviu para ampliar a tensão e a angústia de sua alma diante da iminente morte de sua filha. Desde o momento em que Jairo aparece em cena, o seu desespero torna-se evidente, pois ele suplica insistentemente a Jesus para que vá com ele e salve a sua filha. A razão de tal desespero se dá pela consciência que ele tinha de que não havia mais recursos humanos que pudessem curar a menina, estando ela nos últimos suspiros de sua vida. Por isto, a suspensão momentânea da marcha em direção à sua casa constituiu-se num motivo de agonia e desespero ainda maiores. A aflição de Jairo é justificada pela fatídica notícia que lhe chega quando ele ainda está a caminho de casa: “a menina está morta”. Dizem que “enquanto há vida, há esperança”. Não havia mais vida. Acabara a esperança? Jesus contraria esta lógica: “Não temas, crê somente”, diz Ele. Jesus é a esperança.

Chegam à casa. Esta já está ocupada pelas carpideiras no exercício de sua profissão, é o que dá a entender a mudança súbita de atitude, que vai bruscamente do pranto à derrisão, quando Jesus afirma que a menina não está morta, mas dormindo. Não se espera tal atitude de familiares e amigos que choram os seus mortos. De qualquer forma, a cena é dramática e barulhenta, pois o ambiente está em alvoroço, e tomado por grande pranto (cf. v. 38). Sobre a maneira dos judeus honrarem o mortos, Pohl (op.cit. p. 191) afirma: “Tudo isto estava previsto em tradições firmes: o tom lamurioso das flautas, cânticos alternados com papéis atribuídos, torcer de mãos e bater de pés, palmas, pratos e paus sonoros. Em meio a tudo isto o falecido era beijado sempre de novo, seu nome chamado em tom de lamento e seu louvor declamado com voz elevada. Nos instantes antes que se cobrisse o corpo, o luto chegava ao auge. As mulheres batiam no peito. Todos arrancavam os cabelos e arranhavam o rosto. As vestes de cima eram rasgadas seguindo um ritual determinado, de cima para baixo, mas sem passar do umbigo. Quando a morte era de um dos pais, o rasgo devia ser do lado esquerdo na altura do coração, nos outros casos no lado direito […] aos lamentos na casa de luto seguia o séquito até o cemitério, enquanto toda a população da aldeia abria alas. O féretro parava várias vezes para dar ocasião a novas expressões de lamento e louvor, até completar-se o sepultamento dentro de rituais litúrgicos grandiosos. Subtrair-se a estas festividades era quase impossível e podia atrair condenação”.

A ordem de Jesus para que saíssem pode ter o significado de que o serviço dos pranteadores já não era mais necessário, mas também pode significar que, por sua incredulidade, não lhes era permitido ver o milagre. Assim, apenas os pais e os discípulos que tinham ido com ele são autorizados a Permanecer. Entram no quarto da menina. Seu corpo inerte, lividamente disposto sobre a cama. Olhos angustiados o contemplam. Era apenas uma menina (criança – παιδιον) de 12 anos. Às vezes a palavra παιδιον refere-se à uma criança muito pequena, um bebê (Mt. 2:8,9,11; Lc. 1:59:66; Hb. 11:23), mas aqui é esclarecido que trata-se de uma jovem, uma virgem (Mc. 5:42). Pohl (op. Cit. p. 193), citando C. H. Bird, sugere que talvez tenhamos aqui uma indicação velada ao cumprimento de uma promessa de salvação, pois “[…] Jr. 31:4,13,21 anuncia que Israel, como virgem que caiu, ressuscitará, andará e dançará”. O argumento baseia-se na sugestão de que em Marcos, as frases com “pois” (γαρ) “[…] têm a função de fazer a ligação com um simbolismo veterotestamentário mais profundo (Mc. 1:16; 5:42; 7:3,4; 11:13; 13:14). Neste sentido, as duas mulheres de 5:21-43 representariam Israel desonrado e prostrado, para o qual raiou o tempo de salvação”. Não seria surpreendente se Marcos objetivasse tal associação, levando em conta, por exemplo, que em 11:13 temos uma grande possibilidade de estarmos diante de uma espécie de parábola narrativa acerca de Israel. Todavia, a leitura natural do texto sugere mais que γαρ ετων δωδεκα serve para indicar que não se tratava de uma criança pequena, um bebê, pois ela pôs-se a andar.

Crianças de 12 anos não eram revestidas de muito valor na sociedade judaica. Outros níveis de existência eram mais valorizados. Mas Jesus diferenciava-se também neste aspecto. Segura a mão da menina e faz uso de uma expressão aramaica repleta de carinho (talita cumi). A palavra traduzida por “menina” tinha o mesmo tom afetuoso que se tem quando alguém se refere carinhosamente a uma criança, chamando-o de “cordeirinho” (Comentário Bíblico Vida Nova, p. 1444). Assim, Jesus teria dito algo próximo a “cordeirinha, acorda!”. A cordeirinha acordou. Foi abraçada por seus pais. Foi amada por Jesus. Marcos afirma que a menina se levantou “imediatamente”, e “andava”, e que os circunstantes “assombraram-se com grande espanto” (v. 42). Assim, no primeiro caso temos a prova do milagre, e no segundo as testemunhas oculares, que em seu espanto, confirmam que o milagre aconteceu.

Marcos conclui a história com duas ordens de Jesus: a de guardar sigilo do que aconteceu e a de alimentar a menina. A primeira ordem visava impedir que sua crescente fama atraísse ainda mais dificuldades para ele; a segunda ordem foi uma expressão de cuidado e atenção àquela jovem, devolvendo-a ao ritmo normal de sua vida.

Considerações Finais

Procuramos abordar o nosso texto de análise enfocando os aspectos emocionais e psicológicos relativos aos personagens e a Jesus, sem, contudo, ignorar os aspectos retóricos e teológicos estabelecidos pelo autor. Entendemos que estas histórias nos dão conta do modo pessoal como Jesus tratava as pessoas, de como ele as via em sua individualidade, enquanto seres humanos carentes do seu socorro. Apesar de estar constantemente cercado por multidões, o Mestre era capaz de ver as pessoas como indivíduos que sentem, sofrem e choram os seus dramas na vida.

Percebemos no relato de Marcos que o gracioso Salvador não se sujeita às convenções sociais que qualificam as pessoas por sua condição existencial, privilegiando uns em detrimento de outros. Para Jesus, não há diferença entre um homem rico e uma mulher empobrecida, e uma criança tem tanta importância e dignidade como qualquer outra pessoa. Para Jesus, o sofrimento humano deve ser visto com olhos piedosos, e a alma angustiada não deve ser ignorada. Nas palavras de Hendriksen: “O que é especialmente importante é o fato de que, por todo o capítulo, tanto o poder quanto a piedade de Jesus são revelados. Seu coração compassivo é exposto”. 4

O encontro daquelas pessoas com Jesus não apenas devolveu-lhes a paz e a alegria, mas, certamente, cercou suas vidas de significado, pois não se pode imaginar que uma experiência tão profunda com o meigo Salvador ficaria apenas no âmbito de uma lembrança de algo fantástico ocorrido no passado. Pode-se vislumbrar que o encontro daquelas pessoas com Jesus inaugurou uma nova fase em suas vidas, uma fase caracterizada pela certeza de que Cristo era a Graça de Deus comunicada aos homens; o Salvador do homem em sua tragédia existencial. Aprenderam que encontrar Jesus era encontrar não apenas a cura, não apenas a ressurreição (física), mas também, e acima de tudo, era encontrar a vida.

 

Citações

  1. TRHOUP, Marcus. Macro Estrutura e Agenda Teológica de Marcos. João Pessoa, 2013. Apostila do Módulo de Teologia de Mateus e Marcos.
  2. CAMERY-HOGGATT, Jerry. Comentarista do Evangelho de Marcos do Comentário Bíblico Pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 2003.
  3. CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento Interpretado: Versículo por Versículo Vol. I. p. 699. São Paulo: Hagnos, 2002.
  4. HENDRIKSEN, William. Marcos: Comentário do Novo Testamento. p. 280. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.